quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Huayhuash - Terceiro dia

Depois de dormir literalmente contando ovelhinhas, acordo numa manhã muito linda e ensolarada. Saio do meu refúgio e já vejo centenas de ovelhas saindo dos currais e tomando o caminho das montanhas. Logo estarei fazendo o mesmo, mas no sentindo contrário delas. Preparo um café da manhã, com chá indiano com gengibre e o típico pão de chão com geléia de morango. Antes de terminar meu desejum recebo a visita de um casal que estava curioso em saber quem seria o gringo ali perdido, pedem licença e então entram no meu refúgio, percebo que os dois ficaram surpresos ao me encontrarem ali dentro, sossegado com metade do corpo ainda dentro do saco de plumas e a outra metade do corpo debruçado sobre a cozinha. Ofereço-lhes um chá e conversamos um pouco, eles me explicam que tem um curral há uns 400 metros abaixo e que já estavam subindo pastorear as ovelhas montanhas acima. Ficam admirados por encontrar alguém ali, mas logo partem com suas ovelhas.

Termino meu café da manha e logo guardo tudo na mochila, tudo pronto pra mais um dia de caminhada. Deixo meu refúgio pra trás, dou um tchau com acenos de mão a Orlando e sua esposa que também seguem com suas ovelhas e vou em direção a um outro vale por onde deverei caminhar por algumas horas, cruzo alguns currais abandonados e vou seguindo um caminho levemente batido. Dou uma parada numa boa pedra pra resolver algumas necessidade e logo retomo minha caminhada mais leve e depois de uns 10 minutos encontro uma cachoeira de uns 8 metros de altura. Paro ali pra um banho matinal, escovo os dentes e prepara um suco. Agora mais leve e mais limpo parece que até o dia ficou melhor.

Minha preocupação é com o fundo do vale que vai se descortinando a minha frente. Lá no fundo eu avisto uma montanha muito grande, a qual teria que atravessar. Pelo pobre mapa que estava levando o caminho para cruzar aquele vale e subir a montanha parecia ser pela direita do vale. Mas desde que vi a montanha pela primeira vez, já deduzi que o melhor caminho seria pela esquerda, mesmo tendo um caminho mais íngreme, parecia chegar a um col, ao qual imaginava que daria acesso ao outro lado da montanha e do vale. Nesse trecho da caminhada não havia mais caminho definido, somente alguns caminhos de animais.
Algumas horas de caminhada foram muito tensas, meu mapa cada vez mais parecia dizer que o caminho era pra direita, eu continuei insistindo no meu instinto e visão de montanhista e segui subindo pela esquerda mesmo sem encontrar nenhum caminho definido. É incrível quando estamos com dúvida ou perdido, tudo que você avista ao longe parece ser o melhor caminho, eu seguia pela esquerda com os olhos fitos a direita do vale procurando qualquer sinal da trilha.

Para meu alívio encontro logo após uma lage de pedras, pegadas de burros, então suspirei aliviado por saber que estava na direção certa. Quando surjo depois de uma pequena elevação muitos condores saem voando, levo um susto ao ver dezenas de aves daquele tamanho. Junto do susto logo sinto o mau cheiro de um cavalo morto que estava servindo de refeição aos condores. Sozinho ali naquele lugar, logo após uma sensação de perdido e presenciar um cavalo sendo comido por condores não foi a melhor imagem do dia. Atravesso um pequena subida numa moraina com muito cascalho e logo encontro um caminho muito batido.
Finalmente havia encontrado o tal “Passo Yauche”, eles chamam de passo todos os caminhos que sobem uma montanha abruptamente e então atravessamos e descemos para o outro lado do vale. Fiquei contente por minha intuição ter me conduzido ao lugar certo. Descanso um pouco, agora mais aliviado pela tensão de estar perdido. Até o momento não havia tido nenhuma vista do Yerupaja e das grandes montanhas de Huayhuash. Mas sabia que ao chegar no topo do Passo Yauche eu teria uma vista surpreendente.

Segui os conselhos de Yorder Barnabé e me dirigi a crista da montanha para ter uma vista melhor. Estava cansado pois já devia ter subido um desnível de uns 600 metros, mas muito ansioso para chegar ao topo. Após mais uma hora de subida chego ao col que me dá uma visão perfeita de todas essas montanhas. Antes de descer a trilha vou subindo mais a aresta e como Yorder me disse a vista vai ficando mais impressionante, já podia até avistar uma parte da parede do Siulla Grande. Do ponto de onde estou tenho a visão do Rondoy, Jirishanca, Yerupajá, Rasak, Tsakra e outra montanhas menores. Me encontro a 4800 metros de altura e observo montanhas colossais como o Yerupaja de 6600 metros.

Fico sentado observando, admirando e contemplando aquelas lindas montanhas selvagens. Fico me perguntando quando estarei apto a subir uma montanha como aquela, como gostaria que fosse na próxima temporada. Fico olhando a montanha e buscando um caminhos menos vertiginoso que leve ao cume, mas só vejo a lei da gravidade desafiada pela neve que insiste em permanecer pendurada em paredes muito verticais. Mas esta montanha Yerupajá entrou na minha lista, talvez seja a mais linda e mais perigosa que anseio em escalar neste momento, mas vou dormir com a tela que tanto queria ter pintado em minha memória.

O Rasak uma outra linda e enorme montanha cobre uma parte da visão do Yerupajá, e agora valorizo muito mais a escalada do Waldermar Niclevicz no Rasak de 6000 metros. Vejo o quão duro deve ter sido sua escalada por essas montanhas perigosas e desertas. Fico imaginando que aqui foi o cenário de grandes escaladas e grandes conquistas, um lugar de homens realmente corajosos. De grandes aventuras, de grande solidão, de dias na montanha enfrentando perigos reais e desbravando caminhos desconhecidos, fico até com vergonha de estar aqui a passeio caminhando levemente por essas montanhas enquanto as paredes de gelo gritam para serem escaladas.
São aproximadamente uma hora da tarde e devo baixar a outra face da montanha que havia subido, identifico o caminho agora mais batido e vejo que terei algumas horas castigantes para meus joelhos, vou descendo rapidamente para aproveitar mais a descida, tenho pressa porque não quero terminar a caminhada à noite. O caminho agora fica bem mais fácil, pelo mapa seria só seguir esse próximo vale até o encontro com o rio Paclión, a laguna Jahuacocha ficaria mais alguns quilômetros acima no rio Paclión. Desço rapidamente uns 300 metros de desnível e logo estou atrevessando um outro vale a esquerda de um belo riacho, vou passando por lugares de uma beleza impressionante, algumas pastagens, riachos, algumas vaquinhas descançando a sombra de cipestres. Se tivesse mais tempo gostaria de parar por aqui pra tirar um cochilo, mas estava com pressa e fui caminhando em um ritmo muito forte, quase correndo. Por um momento tenho que parar pra fazer algumas fotos de uns paredões enormes e incrivelmente escaláveis, com fendas que parecem ter mais de 400 metros, fico impressionando com tanta rocha, pelo que pesquisei depois, ali ainda não existe nenhuma via de escalada em rocha, mas o potencial é sem dúvida enorme. Fico ali observando alguns sistemas de fendas que poderiam conduzir ao topo daquelas torres de granito. De longe parece que algumas tem mais de 700 metros. Continuo pela trilha até chegar em outro vale agora do Rio Paclión, ainda estou alto e agora já avisto no fundo deste outro vale a lagoa que estava buscando e que seria meu destino final da caminhada.
Agora minha pressa diminui pois seria só descer mais uma encosta de uns 300 metros e já estaria chegando ao encontro da laguna Jahuacocha. Lá do alto avistei apenas umas três barracas armadas próximas ao final da lagoa. Já imaginava que teria companhia por ali, pois o lugar é ponto de parada para quem faz o percurso inteiro. Mas imagina que encontraria mais pessoas. Desço uma trilha bem inclinada e com muito pó, escorrego várias vezes, numa delas caio sobre uma perna, por pouco eu não torço o pé. Respiro fundo e tento descer mais vagarosamente e com mais cuidado, após uns 30 minutos de descida já estou chegando as margens da lagoa. Como era de se esperar vejo algumas casinhas de camponeses, e vejo que há pessoas morando por aqui, também cuidando das suas ovelhas e animais. Atravesso sobre algumas pedras uma pequena cascata, que então me deixa do outro lado da margem do rio Paclión.

Deste lado estão as barracas que avistei lá do alto. Logo que chego encontro o cozinheiro e o guia de alguns clientes italianos que estavam fazendo o circuito todo. Como era de se esperar eles ficam surpresos por eu estar ali sozinho, sem burros, sem guia, sem barraca. Logo um deles conta que um gringo se perdeu por ali há uns dois anos atrás e quase morreu de fome, contam que uma turma foi seqüestrada por campesinos e por aí vai, pra mim é tudo pressão pra na próxima eu pagar um guia.
Fico muito aliviado por ter chegado ali ainda com sol alto e poder curtir aquela lagoa linda, com uma cor impressionante, um verde esmeralda muito lindo. Não queria acampar ali perto dos Italianos, queria encontrar um lugar bacana, que ficasse isolado, pelo menos por aqueles dois dias que permaneceria ali. E então saio em busca de um lugar legal. Antes de sair um campones local me cobra uma taxa de 15 soles, uns 7 reais pra poder acampar ali, dou uma chorada, digo que não sabia, que não ia nem montar barraca. Mas não teve jeito, paguei e acabei fazendo amizade com o tal morador . Ele vive ali com sua esposa e algumas ovelhas. Segui contornando a lagoa que agora se mostrava muito grande, fui caminhando até chegar na outra margem, este lado da lagoa fica muito próximo do Glaciar do Jirishanca e do Rondoy, montanhas de 6000 metros muito vertiginosas.
Encontrei um Kenual muito velho e muito grande, nasceu na encosta de uma montanha menor, sua copa segue desde uma parede rochosa até a margem da lagoa formando uma grande sombra. Abaixo do Kenual havia uma pilha de pedras que formava uma espécie de muro, e ao lado destas pedras empilhadas uma grama verdinha se estendia até a lagoa. Aquele seria o lugar ideal pra eu montar meu bivaque e passar ali dois dias muito tranqüilos debaixo daquela majestosa e imponente árvore.

Estendi meu isolante na grama, coloquei o saco de dormir sobre ele e empilhei algumas pedras formando um semi-circulo onde ficaria com a cabeça. Enquanto arrumava meu cantinho, muitas avalanches rolavam parede abaixo do Jirishinca e Rondoy, ouvindo-se de muito longe um forte estrondo. No começo fiquei assustado, mas depois fui acostumando e as avalanches foram diminuindo. Estava faminto, preparei uma sopa e comi com alguns pães.

Teria ainda algum tempo até anoitecer então resolvi preparar meu material para pescar. Antes de partir me informei se existiam trutas naquelas lagoas. Levei linha e uns 4 anzóis. Improvisei uma vara com meu bastão de caminhada, o que descobri mais tarde não ser uma boa idéia. Não me agüentei e fui testar meu equipamento. Ao lado do Kenual que acampei havia um outro com um galho muito grosso que se estendia acima da lagoa por uns 3 metros. Não resisti, peguei uns pedaços de pão, subi no galho, arrumei um lugar pra sentar, com os pés quase tocando aquela verde lagoa, fiquei ali sentado relaxando e esperando que uma truta mordesse minha isca. Não entendia nada de pescaria e acabei voltando de mão vazia antes de escurecer. O pôr do sol parecia uma pintura, a gigantesca parede branca de neve da face oeste do Jirishanca e Rondoy estavam agora com a cor laranjada de um final de tarde, o verde esmeralda da lagoa aos poucos estava escurecendo. Juntei muitas lenhas de árvores e arbustos encontrados no chão e próximo do acampamento e ao cair a noite uma bela fogueira iluminou aquele cantinho selvagem a beira da lagoa. Estava um pouco frio, mas o calor da fogueira também deixava o lugar mais aquecido. Entrei em meu saco de dormir e fiquei observando aquele céu estrelado e o muro de montanhas que me cercava, mesmo a noite é possível definir bem a silueta das montanhas, pois os glaciares e os paredões de gelo são tão brancos que o mínimo de luz é suficiente para notar sua presença. Dormi tranquilamente abaixo daquela árvore que me protegia de um céu lindo e estrelado.

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